Aqui, doido varrido não vai pra debaixo do tapete

27/09/2014

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Rodrigo Séllos estava no primeiro período de cinema na UFF quando decidiu registrar o dia a dia dos pacientes, ou melhor, clientes do Serviço de Atenção Diária do Espaço Aberto ao Tempo, do Instituto Municipal Nise da Silveira, localizado no Engenho de Dentro, na cidade do Rio de Janeiro. Em 2005, durante seis meses, Rodrigo freqüentou o instituto conversando e gravando com clientes, psicólogos, psiquiatras, funcionários e familiares. Esse material foi mostrado ao amigo Rená Tardim, estudante de jornalismo da Uerj, e os dois decidiram deixar as fitas descansarem enquanto amadureciam, estudavam e aprendiam mais em suas faculdades.

Não podemos precisar o que aconteceria se os jovens tivessem editado e finalizado o material logo após as filmagens, isso seria um exercício leviano e displicente, mas podemos afirmar, ao menos, que o produto nascido dessa espera mantém o frescor e a inocência de um primeiro trabalho. Entre 2009 e 2010, Rodrigo e Rená tiveram que rever todo o material filmado e pensar que documentário poderia surgir daquelas imagens e entrevistas que estavam adormecidas há quatro anos.

aquidoido01O trabalho de montagem é primoroso e respeita a imaturidade e a jovialidade do material captado. As entrevistas são intercaladas com os momentos do dia a dia na clínica, como o jogo de futebol, a aula de música e a preparação do almoço no refeitório, o que permite um espaço, uma reflexão entre as falas, por vezes difíceis de serem absorvidas pelo conteúdo impactante e tão diferente da nossa realidade dita “normal”. As imagens nos ajudam a entender melhor esse mundo distante e ao vermos a seriedade com que a partida de futebol é disputada, gol a gol, lance a lance, nos aproximamos desses excluídos que nós, sociedade, preferimos trancar e esconder.

A liberdade que a equipe de filmagem encontrou para trabalhar é espantosa e a relação de confiança estabelecida com os pacientes comove e faz pensar na responsabilidade que esses dois jovens tiveram ao montar e preparar o documentário. No início, Rodrigo vai chegando devagar e conquistando a confiança de Bruno, um jovem pouco falante e sempre agarrado a um inseparável tambor. Essa timidez de Bruno escondia o intenso interesse pela câmera e pelo filme. Logo Bruno já está com a câmera na mão, filmando e conversando com os pacientes, depois entende que o papel de entrevistador é mais divertido e assume o microfone para nos brindar com tiradas e perguntas delirantes! A interação de Bruno com a equipe desata o resto de resistência que poderia existir e permite que a câmera esteja sempre no centro das atenções e das conversas.

Aqui, doido varrido não vai pra debaixo do tapete é um filme para ser aplaudido de pé! Rodrigo, Rená,aquidoido04 e claro, Bruno, nos levam por uma viagem fantástica onde o preconceito é jogado para escanteio, o bom humor impera, mas os assuntos delicados são respeitados e tratados de forma direta e sem rodeios. É impossível levantar da cadeira até o fim dos créditos finais. Os dois realizadores merecem o acadêmico dez com louvor!

Aqui, doido varrido não vai pra debaixo do tapete (Here wackos are not swept under the rug)

BRASIL, 2010. 81 minutos

Direção: Rodrigo Selló e Rená Tardin

 

Os Representantes

27/09/2014

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O Nordeste brasileiro sofre com duas pragas há décadas: a seca, que parece ser eterna, e os políticos locais, que estão longe de mudar a maneira como governam a região. As mudanças climáticas que preocupam ambientalistas pelo mundo inteiro já ameaçam a maior bacia hidrográfica do planeta e, por incrível que pareça, a seca está chegando aos afluentes do Amazonas. E seca lembra Nordeste, que lembra verba extra, que lembra ajuda humanitária, doações, políticos, desvio de dinheiro…

O cineasta Felipe Lacerda, co-diretor de Ônibus 174 (2002), assina seu primeiro trabalho como realizador-solo partindo para o interior do país tentando mostrar como funciona a distribuição de alimentos para a população ribeirinha. O documentário tinha a intenção de registrar a logística operacional, o transporte e a entrega das cestas básicas, mas logo o diretor percebeu que uma história maior esperava para ser contada. O filme que seria voltado para a preocupação ambiental assume outros contornos, revelando os bastidores do circo político no Brasil.

Outubro de 2005. Felipe chega no dia da votação do Plebiscito Nacional sobre o Desarmamento e, sem conhecer a região, decide seguir os passos de um líder comunitário que conseguiu se eleger vereador. Em todos os ambientes, o assistencialismo e os constantes pedidos de ajuda, emprego, dinheiro e remédio se mostram parte da rotina do vereador, quase uma liturgia sagrada e obrigatória. Todos querem um benefício individual e uma palavra de conforto, querem ouvir que tudo será resolvido, não importa qual seja o problema. Mesmo sabendo que não pode solucionar todos pedidos, o político é obrigado a balançar a cabeça concordando.

repre05A montagem conta duas histórias que logo se transformarão em uma. Vemos a Base de Operações do Exército, onde militares, políticos e conselheiros decidem a estratégia de ação. E as andanças do vereador e dos assessores do governador preparando o terreno para receber o auxílio vindo do Governo Federal, mas que “foi totalmente costurado e intermediado através do poder do Governo Estadual”, como gostam de afirmar os assessores. Desde a base de operações, passando pelos sucessivos embarques e desembarques, até a distribuição final, as cestas básicas são tratadas como uma mina de ouro, um cartão de visitas dos políticos locais.

A lente da câmera de Lacerda é atrevida, busca a fala escondida pela mão, pelo abraço amigo dos políticos, mas sabe respeitar a dor e angústia dos populares que mesmo com a vergonha precisam pedir, precisam tentar conseguir ajuda da forma que seja. O único momento em que Lacerda se detém é ao entrar na Prefeitura para participar de uma reunião entre os vereadores e o prefeito. A câmera fica sempre alguns passos atrás dos políticos e não sabemos se ela terá permissão para registrar a conversa. Do alto da escadaria, enquanto conversa animadamente com os outros políticos, o vereador-personagem acena discretamente para a equipe continuar em movimento, continuar seguindo seus passos até entrar sem aviso, sem preparação, quase que no susto na sala do prefeito.

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Felipe Lacerda, na montagem, valoriza esse momento, repetindo e colocando em câmera lenta a mão do vereador dando o discreto sinal para a câmera. Sim, isso é um filme, é um filme político onde alianças são costuradas. Se o governador faz questão de desembarcar com as cestas básicas, abraçar a população e receber o crédito pela ajuda, Felipe deixa claro qual o papel do vereador-personagem dentro do filme e faz questão de mostrar isso de forma bem explícita.

Os Representantes faz um recorte preciso da situação política do interior do Brasil – será só no interior? – mostrando que os dois lados da moeda, os governantes e o povo, jogam em times diferentes, mas que conhecem as regras do jogo. Como bem disse um vereador no filme: “Antes era só chegar com cinquenta reais, um saco de cimento e pronto. Agora, não. É preciso fazer alguma coisinha…”

OS REPRESENTANTES (The Representatives)

BRASIL, 2010. 71 minutos

Direção: Felipe Lacerda

Luz nas Trevas

11/05/2012

Rogério Sganzerla tinha o sonho de continuar a história de Luz Vermelha, o mítico personagem vivido por Paulo Villaça nos cinemas e livremente inspirado na vida de João Acácio Pereira da Costa, o famoso Bandido da Luz Vermelha e que foi preso em São Paulo no fim da década de 60. Sganzerla faleceu em 9 de janeiro de 2004 sem conseguir iniciar as filmagens do novo filme. O texto com mais de 700 páginas foi deixado inacabado, Rogério estava começando a transformar as idéias e anotações em roteiro.

Helena Ignez, musa e companheira na ficção e na realidade, não aceitava deixar o material parado, perdido no tempo e sem receber o merecido destino: a tela de cinema. Helena partiu para a árdua tarefa de adaptar o texto e desenvolver o roteiro respeitando as anotações e observações do marido. O resultado desse trabalho é o longa-metragem Luz nas Trevas que mostra o bandido Tudo-ou-Nada seguindo os passos de Luz Vermelha, o pai que nunca conheceu.

Djin Sganzerla e André Guerreiro Lopes esperando a câmera rodar

Temos que agradecer e muito a Helena por não ter se conformado em deixar o texto de Sganzerla de lado. Como ela mesma diz: “Não fiz isso por mim, fiz pelas novas gerações que perderiam essa oportunidade de conhecer o texto do Rogério. E o texto no cinema nacional está tão carente.” O roteiro de Sganzerla, adaptado por Helena, apresenta diálogos impagáveis para personagens fantásticos em situações surreais. Uma obra de rara felicidade e inspiração numa época em que o cinema abraçou o debate social, mas com amargura e tristeza. Helena e Sinai Sganzerla, filha de Rogério e produtora do longa, utilizam trechos de filmes anteriores do cineasta para formar um mosaico colorido e cheio de referências cinematográficas.

Os fãs de Quentin Tarantino e Robert Rodrigues irão se impressionar com o uso da linguagem pop e a inserção de histórias em quadrinhos como imagem de cobertura. Os ângulos de câmera e a montagem bem cadenciada podem levar o público mais jovem a lembrar de Kill Bill Vol.01 (2003) e Sin City (2005). O texto ácido e os diálogos ligeiros certamente remeterão a Pulp Fiction (1994), mas a influência de Luz nas Trevas vem mesmo da obra de Rogério Sganzerla. É uma boa oportunidade para rever o clássico O Bandido da Luz Vermelha, filmado em 1968.

Um elenco estelar para um conjunto de personagens impagáveis!

O tema central da história é a busca de Tudo-ou-Nada pelo pai inexistente, mas o pano de fundo abriga a inquietação de Sganzerla contra o sistema judiciário brasileiro que condena os pobres e absolve os ricos. A luta contra a desigualdade social percorre a trama, mas sem afetá-la diretamente ou aparecer de forma panfletária. Uma aula de roteiro! Com muita criatividade, Helena mantém o discurso político e ainda assim faz um filme policial empolgante. Os agentes da lei, a polícia, não escapam do deboche e o bordão do delegado nos atinge com firmeza: “Preto parado é suspeito. Correndo é culpado”. Os políticos também não são esquecidos e a corrupção rola solta, mas sem punição. Ora, não é neste Brasil que vivemos?

Helena e Sinai conseguiram reunir uma constelação de estrelas da cena cultural brasileira para dar vida ao texto de Sganzerla: Paulo Goulart, Simone Spoladore, Bruna Lombardi, Maria Luisa Mendonça, José Mojica Marins, André Guerreiro Lopes, Djin Sganzerla, Sandra Coverloni, Arrigo Barnabé, Sérgio Mamberti, Mário Bortolloto, Cacá Carvalho, Duda Mamberti, Otávio Terceiro e a incrível participação de Ney Matogrosso como Luz Vermelha. A presença de Ney é uma grata surpresa para o público e o final, inesquecível, fecha com perfeição um trabalho feito com amor e paixão.

O cartaz do filme de 68 e Ney em cena, sim até o cartaz parece atuar…

Luz nas Trevas (Light in Darkeness)

Brasil, 2010. 83 minutos

Direção: Helena Ignez e Ícaro Martins

Com: Ney Matogrosso, Bruna Lombardi, Maria Luisa Mendonça, Paulo Goulart, Simone Spoladore

Camponeses do Araguaia: A guerrilha vista por dentro

16/12/2011

O Governo do Presidente João Baptista Figueiredo tinha a responsabilidade de promover a chamada “Abertura Política no Brasil” e a Lei Nº 6.683, promulgada no dia 28 de agosto de 1979, foi o primeiro passo para a redemocratização do país. A Lei da Anistia, como ficou conhecida, concedia o perdão a “todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos ou aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.

Hoje, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e várias entidades de direitos humanos consideram que a Lei da Anistia varreu a sujeira para debaixo do tapete e estão tentando uma revisão do texto no Supremo Tribunal Federal. Se a interpretação da lei e das ações políticas cometidas entre o início do Golpe Militar e a Abertura Política gera dúvidas e questionamentos no alto escalão do governo e na sociedade civil organizada, qual seria o impacto desse momento na vida de camponeses e pequenos proprietários de terra no interior do país?

Camponeses do Araguaia – A guerrilha vista por dentro de Vandré Fernandes faz essa pergunta e procura lançar um foco de luz num período ainda obscuro da nossa história. Vandré entrevista camponeses e moradores da região do Rio Araguaia, na bacia Amazônica, no coração do país, que conviveram com os guerrilheiros e com os militares nas décadas de 60 e 70. A câmera de Vandré não tem pressa, se posiciona em frente à pessoa, com o quadro aberto e apenas espera, ouve e absorve. Essa simples escolha é decisiva para entendermos a intenção do cineasta e para onde ele quer conduzir o filme.

Talvez Vandré tenha percebido que essas pessoas já passaram tantas vezes por interrogatórios que a proximidade da câmera, a distância do inquisidor, mesmo que na figura do diretor, poderia ser ofensiva demais. Ao invés disso prefere escutar, se afastar com o equipamento e esperar ser aceito. Uma decisão importante que mostra o cuidado que a direção teve com o tema, ainda um tabu na sociedade brasileira. O filme é investigativo sem ser invasivo. As histórias das torturas são impressionantes, tanto as físicas quanto as psicológicas, ainda mais quando ouvimos de pacatos senhores e senhoras de 60, 70 e até 80 anos de idade.

Vandré Fernandes acertou no tom da montagem e na divisão por capítulos que explica a história sem ser excessivamente professoral. Uma obra feita para a sala de cinema, mas que deveria ser obrigatória em outras salas: as salas de aula de todo o país, desde o ensino fundamental até os cursos de mestrado e doutorado. A história do Brasil não pode ter apenas uma versão.

Camponeses do Araguaia – A guerrilha vista por dentro (Peasants from Araguaia – The guerrilla inside view)

Brasil, 2010. 73 minutos

Direção: Vandré Fernandes

No meio do rio, entre árvores

02/11/2011

Jorge Bodansky mantém um profundo contato com a Amazônia e com a cultura ribeirinha. O projeto TV Navegar, criado por ele, tem como característica “dar voz à população local, capacitando-a a gerar seus próprios conteúdos, numa visão de dentro para fora” nas palavras do próprio cineasta. Bodansky vai e vem da Amazônia, e da região Norte do Brasil, desde a década de 60. Nesse período, o diretor realizou dezenas de documentários, vídeos, curtas e programas de TV sempre tirando imagens, informações, conteúdo de lá pra cá, ou seja, entrando na mata e explorando as riquezas para repassá-las ao mundo civilizado.

Claro que esse comentário não pode ser destacado do texto e muito menos analisado fora do contexto estabelecido aqui. As imagens de uma queimada no coração da floresta amazônica, ao longo da recém inaugurada Transamazônica, num angustiante travelling de quase um minuto, sem cortes, rodou o mundo e chocou nações numa época em que a preocupação com o meio ambiente ainda não estava na pauta mundial. “Iracema – Uma Transamazônica”, realizada em parceria com Orlando Senna, na década de 70, só foi liberado pela censura do regime militar em 1981, mas antes disso, o filme já tinha sido exibido de forma clandestina no Brasil e percorreu festivais pelo mundo todo.

Com No meio do rio, entre as árvores, Bodansky continua nos trazendo imagens, belíssimas por sinal, da floresta, mas agora percebemos que o cineasta está mais preocupado em trocar experiências do que simplesmente absorver a cultura local através da lente de sua câmera. A ideia de levar oficinas de vídeo, circo e fotografia para os moradores das comunidades ribeirinhas do Alto Solimões, na Amazônia, por si só já seria de tirar o chapéu, mas Bodansky vai além, registra esses momentos e utiliza imagens feitas pelos próprios moradores dentro do filme, como corte para sua própria câmera. Um trabalho de troca, confiança e desprendimento por parte do autor que mostra estar em harmonia com o ambiente que o cerca há mais de 40 anos.

O gosto pela polêmica e pela denúncia continua o mesmo e Jorge Bodansky não se furta a ouvir reclamações dos moradores, presidentes de associação e professores. O poder público pouco avança dentro da mata e o descaso com a saúde é a principal queixa dos ribeirinhos. Aqui no Rio, e por todo o Sul Maravilha, estamos mais do que acostumados com essas reclamações vindas dos moradores de áreas de risco ou controladas pelo tráfico de drogas. Mas qual a desculpa para a falta de atenção com os moradores da Amazônia?

O documentário consegue alcançar o objetivo proposto que é nos mostrar as oficinas e o trabalho realizado pela equipe da expedição, mas também nos faz entrar no meio do rio, entre as árvores, como o próprio título adianta. O avanço da tecnologia digital foi fundamental nesse processo. Com uma pequena câmera de vídeo, que não chega a custar R$ 500,00, os moradores produzem entrevistas e as imagens já não possuem um abismo técnico quando contrapostas ao material profissional.

Algo impensável nas décadas de 70, 80 e até 90, a Era do S-VHS, único formato acessível à população e que perdia qualidade de forma absurda quando copiado de uma fita para outra. Justificativas para entender porque essa experiência não fora realizada antes? Quem sabe. Mas definitivamente esse era o momento e Bodansky mais uma vez conseguiu uma obra digna de aplausos. Quando vemos os créditos subindo, e percebemos que o filme acabou, ficamos com aquela sensação de quero mais. Será que Jorge Bodansky já está com saudades da Amazônia também?

No meio do rio, entre árvores (Within the river, among the trees)

Brasil, 2010. 72 minutos

Direção: Jorge Bodansky

Nélida Piñon: Mapas dos Afetos

02/11/2011

Nélida Piñon nasceu no Rio de Janeiro, em 1937, filha de pais espanhóis de origem galega, e ao completar dez anos mudou-se com a família para Borela, na Galícia, cidade natal de seu pai, onde assimilou costumes e tradições que acabariam por influenciar sua futura obra. O primeiro livro, “Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo”, foi publicado em 1961 e a crítica especializada considerou a linguagem inovadora. Ao todo, Nélida já publicou mais de vinte livros entre romances, contos e ensaios. Foi eleita para a Academia Brasileira de Letras em 1989, sendo a primeira mulher a presidir a academia. Em 2005, a escritora foi agraciada com o Prêmio Príncipe das Astúrias tornando-se a primeira mulher e o primeiro escritor de Língua Portuguesa a receber esta homenagem.

O filme Nélida Piñon: Mapas dos Afetos (2010), roteirizado e dirigido por Júlio Lellis, reúne entrevistas realizadas com a escritora e imagens captadas em palestras, eventos e encontros. Nélida recorda o passado, conta histórias do avô, do pai e de como comprou a primeira máquina de escrever. Esse início consegue prender a atenção e o documentário parece seguir a trilha da cinebiografia, o que já seria um material muito interessante, mas ao invés disso se perde com uma montagem frouxa e sem direção.

As falas se sucedem, ora arrastadas, ora desnecessárias, travando a narrativa e impedindo o avanço da história. Não existe um fio condutor capaz de unir as entrevistas ou mesmo reforçar a ideia principal do filme: a relação de Nélida com os amigos. Os capítulos são apresentados como sendo o índice de um livro, uma boa sacada da edição, mas esse efeito visual não é o suficiente para segurar a atenção do público. Mas e os convidados famosos?

As participações especiais funcionam apenas para abrilhantar o cartaz de divulgação da fita: vemos a atriz Fernanda Montenegro em duas raras aparições, a cantora Maria Bethânia dirige poucas palavras para a câmera e a escritora Lygia Fagundes Telles sequer foi entrevistada. Apenas o escritor Mario Vargas Llosa, amigo de Nélida, conversa de forma tradicional com a equipe, mas até nesse momento algo não funciona. Mario e Nélida contam a mesma história e ao invés da montagem encadear um complementando a fala do outro – e assim restabelecer a agilidade perdida – decide fazer o oposto e contrapor quase as mesmas frases, ditas pelos dois personagens.

A fotografia é outro problema sério: as imagens são desnecessariamente tremidas, vemos a câmera se ajeitar de um lado para o outro e isso passa um desconforto visual que casa perfeitamente com a monotonia da montagem, ou seja, é quase impossível ficar dentro do filme, mergulhar na proposta e escutar o que Nélida Piñon tem a dizer. E convenhamos que uma senhora de 73 anos merece uma fotografia bem trabalhada e não uma imagem que parece sair de uma S-VHS.

Durante 85 minutos, com exceção ao breve início, vemos Nélida ir e voltar nas memórias, em momentos pessoais que são importantes apenas para a própria personagem. Faltou distanciamento crítico ao diretor-roteirista Júlio Lellis na hora da montagem, na hora de decidir o que cortar e o que usar do material filmado. Após os créditos finais, ainda vemos um prólogo que se estende por bons minutos e nesse momento é possível recordar uma frase dita pela escritora: “Peço a Deus que me ajude a conviver com as diferenças do mundo.”

Nélida Piñon: Mapas dos Afetos (Nélida Piñon: Maps of Affections)

Brasil, 2010. 85 minutos

Direção: Júlio Lellis

Agreste

02/11/2011

A fotografia do filme nos traz imagens de uma beleza impressionante! Um trabalho de câmera primoroso e sensível. Controle da luz, foco e desfoque, movimentos precisos, firmeza na mão, quase uma aula de cinematografia. Quem sabe essa não tenha sido a intenção dos três operadores: mostrar que sabem todos os truques e técnicas de uma câmera digital. Ou pensando melhor, será que eles sabiam o que estavam fazendo ou tudo foi um mero acaso, um achado na ilha de edição? Questões complexas que ficam sem explicação. Como saber se um desfoque foi intencional e não um erro bem encaixado pelo montador? Ficaremos sem respostas e sendo assim que cada um formule sua própria teoria. E isso tem importância?

A capacidade técnica dos realizadores me parece inquestionável. A montagem une pequenos fragmentos isolados que nunca irão se encontrar, mas que são editados com perfeição. A não-linearidade dos eventos foi uma escolha consciente da direção e que permeia toda a narrativa. Narrativa? Não, de forma alguma, o certo seria dizer que “a não-linearidade dos eventos foi uma escolha consciente da direção e que permeia toda a não-narrativa imposta pelo não-roteiro escrito por Paula Gaitán”. Confuso? Complicado? Experimente assistir ao filme. São setenta e seis longos minutos. Setenta e seis longos minutos. Setenta e seis longos minutos. Setenta e seis longos. Setenta e seis. Setenta. E seis. Longos minutos.

A experimentação da equipe assume uma forma mais contundente tanto na edição de som quanto na formulação da trilha sonora. Outra vez o trabalho é impecável. O excesso de adjetivos é a única saída para explicar de forma direta e sem rodeios como alguns elementos chamam a atenção. Isolados formam uma pequena obra de arte, mas juntos não conseguem estabelecer um diálogo com o expectador. Cada parte da estrutura, aí incluindo o elenco, ou o não-elenco, cumpre o seu papel com eficiência, mas a soma dessas partes não faz um filme. A soma desses elementos não funciona. Tudo parece separado demais. Isolado demais. Solto demais. Parece um vídeoarte para ser utilizado na instalação de algum artista plástico.

Para compreendermos melhor, ou não compreendermos melhor – quem se importa? – com o que vimos na tela é preciso saber mais sobre os realizadores. Paula Gaitán, roteirista, câmera, diretora e montadora, é “artista visual, fotógrafa e cineasta. Formada em Artes Visuais e Filosofia pela Universidad de los Andes, Colômbia, é professora de Cinema e Vídeo na Escola de Artes Visuais do Parque Laje, no Rio de Janeiro. Trabalha como cineasta desde 1978, quando participou como diretora de arte de Idade da Terra, de Glauber Rocha. Sua carreia autoral inclui documentários, videoartes e instalações”.

Agreste é um trabalho experimental, duro, indireto, sem preocupação com o público, sem vontade de agradar, sem meio, sem início, sem narrativa, mas felizmente com fim. São setenta e seis longos minutos. Setenta e seis longos minutos. Setenta e seis longos minutos. Setenta e seis longos. Setenta e seis. Setenta. E seis. Longos minutos.      

Agreste (Drylands)

Brasil, 2010. 76 minutos

Direção: Paula Gaitán

Com: Marcélia Cartaxo, Sara Antunes, Zabé da Loca e Maíra Senise

180º

20/09/2011

O primeiro longa-metragem do diretor carioca Eduardo Vaisman é um daqueles filmes difíceis de serem classificados. Policial? Suspense? Romance? É um thriller? Ou seria uma combinação de estilos. Suspense policial? Romance policial? Drama com suspense? 180º é de difícil classificação, mas é um trabalho fácil de elogiar. A história nasce com um velho e batido “triângulo amoroso”, mas o que se desenrola do ponto de partida é o que faz a diferença neste caso. Nada é o que parece, as aparências realmente enganam e o público vai mudando de opinião com o passar do tempo, com o andar da história.

Claudia Mattos assina o texto desse intrincado suspense, ou melhor, romance e nos mostra que é possível fazer um filme com elementos policiais e sem apelar para soluções mágicas. O roteiro segue os personagens no presente, mas usa o também batido flashback para acrescentar dúvidas, desatar alguns nós que ficaram atados e colocar ainda mais dúvidas no meio do caminho. O vai e vem no tempo, a apresentação não-linear da trama é bem construída e em nenhum momento ficamos perdidos. O que acontece é uma constante mudança de posição em relação aos personagens. Quando parece que encontramos a verdade, descobrimos que ela ainda está longe de chegar.

A montagem é outro ponto forte do filme. O roteiro pede pelo flashback e encaixar com precisão as idas e vindas exige um trabalho delicado e de muita observação. Nem sempre a estrutura que está no papel, no roteiro, funciona quando vista na tela, quando intercalada com outras duas cenas. A edição de sons também tem uma função fundamental nessa transição entre o passado e o presente. Em alguns momentos ouvimos a mudança antes dela se tornar visual e, mesmo sem perceber, já imaginamos que seremos jogados dentro dos pensamentos do personagem.

180º possui uma direção segura, um texto inovador, uma montagem precisa e uma fotografia minimalista que trabalha para unificar a diversidade de tempo-espaço utilizada na trama. A produção possui um esmero técnico de tirar o chapéu e mostra o tamanho da evolução dos profissionais brasileiros que não devem nada ao milionário mercado externo. Mas todo esse trabalho seria desperdiçado se o filme não contasse com um elenco capaz de assumir as mudanças exigidas pelos personagens e incorporar os detalhes ocultos que serão apresentados nos minutos finais.

Eduardo Moscovis faz um jornalista consagrado, idolatrado pelos colegas, um líder que agrega e apaixona. Num momento de ruptura, após a súbita morte do pai, desiludido, resolve abandonar a profissão e se dedicar ao negócio da família, no interior do estado. Moscovis faz essa passagem com perfeição. Vemos que o homem outrora brilhante ainda está lá, mas agora apagado, desbotado, insatisfeito. A atuação de Eduardo Moscovis pontua a mudança dos outros personagens e é ele quem sempre dá o tom do tempo presente e do passado. Com essa orientação bem definida, Malu Galli e o estreante Felipe Abib formam um triângulo que nunca é apresentado como equilátero.

Eduardo Vaisman faz sua estreia como diretor com um longa-metragem bem acabado, que possui uma história inquietante e que nos deixa pensativos do início ao fim da sessão. As lacunas abertas são fechadas pelas escolhas do público mostrando que não é preciso maquininhas, votações e sessões interativas para que possamos escolher o melhor final para um filme, ou pelo menos, o final que nos agrade mais.

180º (180º)

Brasil, 2009. 85 minutos

Direção: Eduardo Vaisman

Com: Eduardo Moscovis, Malu Galli, Felipe Abib

Mário Filho: O Criador das Multidões

29/05/2011

O Brasil é o país do futebol por excelência! Cinco vezes Campeão do Mundo! Berço de craques como Zizinho, Heleno de Freitas, Leônidas da Silva, Didi, Nilton Santos, Zagallo, Mané Garrincha e, claro, o Rei Pelé. Sediou o primeiro Mundial do pós-guerra, em 1950, e para tanto construiu o Maior Estádio do Mundo, o Maracanã. Qualquer garoto sabe que as “cinco estrelas” nasceram de uma vitória heróica, de virada, em solo europeu – fato inédito, contra os suecos, donos da casa. Mas essa história teve um capítulo conturbado com a derrota para o Uruguai em 1950. E o jornalista Mário Filho teve participação decisiva em todos esses eventos.

Mário Filho e o irmão Nelson Rodrigues defenderam com ardor a construção do Maracanã quando os políticos discutiam a viabilidade do projeto. Para Mário era preciso mostrar ao mundo que o Brasil poderia organizar uma competição como aquela e que tinha a capacidade de construir um gigante que se tornaria o maior estádio do mundo. Hoje, o Maraca é motivo de orgulho nacional e recebe turistas vindos de toda parte do mundo. E não vamos sediar outra Copa em 2014?

Mário Filho e Nelson Rodrigues lutaram pela construção do Maracanã!

Após a derrota de 50, os críticos colocaram a culpa nas costas de Barbosa e dos demais jogadores negros da seleção brasileira. Um dossiê chegou a ser preparado pela CBD (Confederação Brasileira de Desportos) indicando que o jogador mestiço, mulato, negro ou índio não conseguiria suportar a pressão de vencer uma final de Copa do Mundo. A nossa raça era frágil e pouco competitiva. A ordem era pra “embranquecer” a seleção brasileira.

Mário Filho foi a voz dissonante e a história provou quem tinha razão. Pelé, aos 18 anos, fez dois gols na final – o primeiro um golaço! – e era negro. Didi, mulato, foi eleito o melhor jogador do mundial e apelidado pela imprensa estrangeira de Mr. Football. E para completar a salada multicultural, hoje vista como uma característica positiva do nosso povo, Mané Garrincha tinha sangue índio nas veias. Tudo muito óbvio hoje em dia. Quem pensaria em barrar Pelé e Garrincha? Quem questionaria Romário? Ou Jairzinho? Ou Paulo César Lima? Se hoje pensamos assim, em parte devemos agradecer à máquina de escrever de Mário Filho.

Djalma Santos, Garrincha, Didi e Pelé na Seleção Brasileira de 1958

O cineasta Oscar Maron Filho, de posse do catálogo de imagens da Atlântida Cinematográfica, reconstrói o Rio de Janeiro do início do século XX e nos faz mergulhar numa época onde o futebol era um esporte de elite, “coisa de inglês”. Difícil imaginar cenário assim, não? Pois foi nesse momento histórico que o jornalista começou a reinventar a crônica esportiva brasileira. O filme tem o mérito de conseguir explicar a importância de Mário Filho através de seus textos e ações, mas para isso a volta ao passado era fundamental.

O trabalho de montagem é primoroso e logo somos transformados em “geraldinos e arquibaldos” vibrando com gols, lances de perigo e bolas na trave. Maron faz um documentário tão emocionante quanto os grandes clássicos do futebol brasileiro, tão emocionante quanto o amado “Fla-Flu” de Mário Filho. A bela fotografia envelhecida do material de arquivo poderia ser atrapalhada pelo excessivo colorido contemporâneo, mas, acertadamente, o diretor decidiu usar o preto-e-branco como tom dominante nas entrevistas captadas e mesmo em algumas imagens atuais. Graças a essa simples concepção foi possível passear pelo Rio Antigo e ouvir os relatos de amigos, estudiosos e jornalistas que conviveram com Mário Filho sem perder a relação espaço/tempo proposta pela montagem.

Mário Filho: O Criador das Multidões é um trabalho cuidadoso e planejado nos mínimos detalhes. Oscar Maron Filho realiza uma obra de paixão pelo futebol e amor ao Brasil, exatamente as mesmas paixões que cercavam a vida do jornalista. Quem gosta de futebol irá se deslumbrar com imagens do Maracanã lotado para ver jogos de Santos, Botafogo, Flamengo, Fluminense, Vasco, América e Olaria. Quem gosta de cinema poderá apreciar um documentário enxuto, organizado, emocionante, bem dirigido e com uma montagem impecável.

Para aplaudir de pé e gritar Gooooooooooool!

Copa do Mundo de 1950: Maracanã lotado esperando pelo título brasileiro!

Mário Filho: O criador das multidões (The Creator of Crowds)

Brasil, 2010. 78 minutos

Direção: Oscar Maron Filho

Marvel Studios

10/05/2011

Quando a Marvel Comics anunciou que iria produzir os próprios filmes muitos fãs espalhados pelo mundo comemoraram a coragem dos executivos que antes já tinham conseguido livrar a empresa da falência. Apesar do grande sucesso das adaptações de X-Men, Homem-Aranha e Hulk, a interferência dos produtores de Hollywood sempre foi vista como negativa entre os chefões da Marvel – sentimento compartilhado pelos fãs e críticos de cinema.

Personagens como Justiceiro, Demolidor, Elektra e Motoqueiro Fantasma resultaram em filmes decepcionantes quando analisamos a matéria-prima disponível para a construção do roteiro cinematográfico. Mesmo os filmes que tiveram uma boa bilheteria, como é o caso do Quarteto Fantástico, não conseguiram agradar aos exigentes e fanáticos leitores de histórias em quadrinhos.

A Marvel Studios foi criada com a intenção de controlar todo o processo criativo e deixar apenas a distribuição a cargo dos grandes estúdios. Dessa forma erros e acertos seriam de responsabilidade interna dos executivos da Marvel que pela primeira vez iriam experimentar uma total liberdade artística desde a escolha do elenco até a contratação do diretor.

Com o caminho livre, Avi Arad, Kevin Feige e Joe Quesada atacaram primeiro personagens que não tinham os direitos de adaptação presos a algum estúdio, assim Homem de Ferro (2008), dirigido por Jon Favreau, e O Incrível Hulk (2008), dirigido por Louis Leterrier, foram aclamados por crítica e público mostrando que a Marvel tinha realmente feito a escolha certa ao “se separar” de Hollywood.

As receitas de bilheteria excederam as expectativas e Homem de Ferro, orçado em U$ 140 milhões, faturou mais de U$ 580 milhões em todo o mundo. O Incrível Hulk não teve tanto fôlego nos cinemas e com um orçamento de U$ 135 milhões arrecadou “apenas” U$ 265 milhões, mas vendeu quase U$ 60 milhões em DVD e Blu-Ray só no mercado norte-americano.

A ideia sempre foi levar para a telona um grande filme dos Vingadores, um projeto ambicioso que só poderia ser realizado se os principais heróis pertencessem a um mesmo estúdio. Com o controle dos personagens, a Marvel Studios lançou a base do ousado empreendimento fazendo primeiro os filmes solos dos heróis.

A ótima recepção de Homem de Ferro 2 (2010), novamente a cargo de Jon Favreau, mostrou que o público estava acompanhando a empreitada e que continuaria fiel. O projeto segue firme com o Thor (2011), dirigido por Kenneth Branagh, e o inédito Capitão América: O Primeiro Vingador (2011), de Joe Johnston, que tem estreia marcada para 29 de julho no Brasil.

Thor foi orçado em U$ 150 milhões e em 11 dias de exibição já arrecadou mais de U$ 242 milhões, ou seja, o suficiente para encher os cofres da Marvel, estabelecer um novo padrão para os filmes de super-herói e preparar o caminho para a tão aguardada primeira aventura dos Vingadores – que tem previsão de lançamento para 4 de maio de 2012.

Resta saber se a equipe criativa terá o mesmo sucesso com um personagem polêmico como o Capitão América. Apesar da presidência de Barak Obama, as cores da bandeira norte-americana não andam muito em alta e após o cruel assassinato de Osama Bin Laden a mania estadunidense de ser “a polícia do mundo” e o “guardião da moral e bons costumes” não tem grande aceitação fora da terra do Tio Sam. Um novo desafio para a Marvel encarar.